Por Fátima Abrantes, coordenadora do Orçamento Participativo
da Secretaria Municipal de Planejamento, Fazenda e Tecnologia da Informação
(Sempla)
“Uma noite ficamos sem luz elétrica. Aí passei a
noite toda lembrando do meu filho que ficou lá no interior. Quando amanheceu o
dia, ele [o novo namorado] disse: hoje vocês vão ver o mar... Lá é pra lá de
bonito! Fiquei tão sugestionada de ver aquele marzão que caí no choro... E olha
que eu sou muito dura pra chorar. Senti uma coisa dentro de mim que me mandava
ficar quieta. Fiquei lá, parada. Meus meninos saíram aos pinotes para dentro da
água, eu não! Deitei e fiquei lá na beira até a boca da noite.”*
Esse é um trecho de “Abraço do Mar”, publicado na Rede
HumanizaSUS, que tem o propósito de refletir sobre a violência contra as
mulheres no Brasil para além dos quantitativos e das estatísticas. São fragmentos
em linguagem poética que navegam entre as ondas da violência.
Nós, da Secretaria
Municipal de Planejamento, Fazenda e Tecnologia da Informação, entendemos
que o Dia Internacional da Mulher é um bom momento para tentarmos ultrapassar o
mar de números sobre agressões e mortes (que infelizmente dão conta de como
ainda estamos longe da igualdade de gênero) para refletirmos um pouco mais
profundamente sobre os horizontes e possibilidades de combate a uma violência, tão
presente no nosso cotidiano, na nossa história e na nossa cultura, que corre o
risco de passar despercebida, seja no ambiente doméstico, nas relações de
trabalho ou nas políticas públicas excludentes, sob a forma física, sexual,
econômica e psicológica. A violência não é um problema da mulher, mas uma
questão social, de direitos humanos e de saúde pública, e os governos têm a
obrigação de combatê-la utilizando todas as ferramentas que possui (e
produzindo outras).
De acordo com a ONU, cerca de 70% das mulheres sofrem algum
tipo de violência no decorrer da vida. Ela percorre o mundo, singrando mares de
indiferença. A ONU enfatizou recentemente as áreas de conflito dos países africanos,
nas quais o estupro de mulheres se faz tática de guerra dos grupos militares; ali,
130 milhões de meninas e mulheres também são vítimas de mutilação genital. Na
África de Mandela, mulheres são assassinadas pelo marido quando as exigências
do “dote” não são cumpridas ou quando acusadas de adultério em “nome da honra”.
No Paquistão, mulheres são deformadas por ácido jogado sobre elas por seus maridos
ou até mesmo pelos pais como castigo ou vingança por contrariarem tradições
religiosas. Pelos quatro cantos de países ricos e pobres, elas são traficadas,
encarceradas em regime de servidão, prostituição e escravidão.
A forma de violência tida como a mais comum é a física. Ela
é praticada geralmente pelo parceiro íntimo, em
que as mulheres são surradas, forçadas a manter relações sexuais ou abusadas de
outro modo. Calcula-se que, em todo o mundo, uma em cada cinco mulheres se
tornará uma vítima de estupro ou de tentativa de estupro. Essa incapacidade de
negociar sexo seguro e de recusar o sexo desejado está intimamente ligada à
alta incidência de AIDS- mais de 60% dos jovens infectados com o vírus na faixa
etária de 15 a 24 anos são mulheres.
Esses são os números oficiais, cujos quantitativos são
produtos de atendimentos e denúncias. E o que fazer com a violência revestida
do medo, das ameaças e da insegurança, a violência “sem violência”? Onde está
registrada a violência psicológica, banalizada por uma sociedade sexista e
preconceituosa? Quantas mulheres se calam porque suas aflições não se traduzem
em um sangue ou mutilações? Sua dor mais
doída ninguém vê, a não ser ela mesma.
É preciso pensar nas articulações onde são produzidas essas
violências: múltiplas faces se ocultam e resultam nas feridas provenientes dos
desequilíbrios entre mercado, Estado e sociedade; nas feridas da exclusão
social, da discriminação racial, da falta de acesso aos bens essenciais, da
desigualdade; no modo competitivo e predatório das relações sociais, pautadas
na negação do outro. Cultivar a paz, a igualdade e a liberdade pressupõem, também,
a explicitação do conflito, retirar das feridas as bandagens que as escondem, colocá-las
expostas, inclinar-se sobre elas, conhecê-las, buscar meios de saná-las, não
acostumar-se às violências institucionalizadas nas escolas, nas prisões, nas
famílias.
Nos serviços de saúde, muitas histórias de violência
continuam ignoradas nas filas de atendimento, caladas nos corredores e
silenciadas nos consultórios por mãos que apalpam, examinam, tateiam e invadem
corpos à procura de sinais físicos que justifiquem as dores, submetendo quem
sofre a maior sofrimento. Causas que não são abraçadas, violências que são
reproduzidas.
*O
novo companheiro levou-a para ver o mar e esse foi “o melhor presente que ganhou
nessa vida”.
Seus olhos cerraram para as marcas do corpo e se abriram para a imensidão de
azuis que fundiam céu e mar. Céu azul fixo, seguro, imóvel; mar azul movimento
se despejando em espumas brancas aos seus pés, fazendo promessas e beijando-lhe
as feridas que se abriam uma a uma, ávidas por serem tocadas.
Observou
a suavidade com a qual o mar ocupava-se em apagar as marcas do seu corpo na
areia. Ocorreu-lhe que, talvez, ele pudesse eliminar outras marcas; não aquelas
que estavam à mostra, mas as mais doídas, as de dentro, das entranhas, do
ventre seco judiado feito o chão rachado do sertão; ventre desassossegado
revirando-se em conflitos por ter negado abrigo aos dois que morreram, antes que
tivessem a chance de vingar. Escolhera não mais gerar filhos sob a dor.
Contudo, ela sabia que, as escolhas, mesmo as certas, podem causar dor.
*Trechos
disponíveis em http://www.redehumanizasus.net/