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sábado, 8 de março de 2014

A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES OU A DOR QUE NÃO SAI NAS ESTATÍSTICAS

Por Fátima Abrantes, coordenadora do Orçamento Participativo da Secretaria Municipal de Planejamento, Fazenda e Tecnologia da Informação (Sempla)

Uma noite ficamos sem luz elétrica. Aí passei a noite toda lembrando do meu filho que ficou lá no interior. Quando amanheceu o dia, ele [o novo namorado] disse: hoje vocês vão ver o mar... Lá é pra lá de bonito! Fiquei tão sugestionada de ver aquele marzão que caí no choro... E olha que eu sou muito dura pra chorar. Senti uma coisa dentro de mim que me mandava ficar quieta. Fiquei lá, parada. Meus meninos saíram aos pinotes para dentro da água, eu não! Deitei e fiquei lá na beira até a boca da noite.”*

Esse é um trecho de “Abraço do Mar”, publicado na Rede HumanizaSUS, que tem o propósito de refletir sobre a violência contra as mulheres no Brasil para além dos quantitativos e das estatísticas. São fragmentos em linguagem poética que navegam entre as ondas da violência.

Nós, da Secretaria Municipal de Planejamento, Fazenda e Tecnologia da Informação, entendemos que o Dia Internacional da Mulher é um bom momento para tentarmos ultrapassar o mar de números sobre agressões e mortes (que infelizmente dão conta de como ainda estamos longe da igualdade de gênero) para refletirmos um pouco mais profundamente sobre os horizontes e possibilidades de combate a uma violência, tão presente no nosso cotidiano, na nossa história e na nossa cultura, que corre o risco de passar despercebida, seja no ambiente doméstico, nas relações de trabalho ou nas políticas públicas excludentes, sob a forma física, sexual, econômica e psicológica. A violência não é um problema da mulher, mas uma questão social, de direitos humanos e de saúde pública, e os governos têm a obrigação de combatê-la utilizando todas as ferramentas que possui (e produzindo outras).

De acordo com a ONU, cerca de 70% das mulheres sofrem algum tipo de violência no decorrer da vida. Ela percorre o mundo, singrando mares de indiferença. A ONU enfatizou recentemente as áreas de conflito dos países africanos, nas quais o estupro de mulheres se faz tática de guerra dos grupos militares; ali, 130 milhões de meninas e mulheres também são vítimas de mutilação genital. Na África de Mandela, mulheres são assassinadas pelo marido quando as exigências do “dote” não são cumpridas ou quando acusadas de adultério em “nome da honra”. No Paquistão, mulheres são deformadas por ácido jogado sobre elas por seus maridos ou até mesmo pelos pais como castigo ou vingança por contrariarem tradições religiosas. Pelos quatro cantos de países ricos e pobres, elas são traficadas, encarceradas em regime de servidão, prostituição e escravidão.

A forma de violência tida como a mais comum é a física. Ela é praticada geralmente pelo parceiro íntimo, em que as mulheres são surradas, forçadas a manter relações sexuais ou abusadas de outro modo. Calcula-se que, em todo o mundo, uma em cada cinco mulheres se tornará uma vítima de estupro ou de tentativa de estupro. Essa incapacidade de negociar sexo seguro e de recusar o sexo desejado está intimamente ligada à alta incidência de AIDS- mais de 60% dos jovens infectados com o vírus na faixa etária de 15 a 24 anos são mulheres.

Esses são os números oficiais, cujos quantitativos são produtos de atendimentos e denúncias. E o que fazer com a violência revestida do medo, das ameaças e da insegurança, a violência “sem violência”? Onde está registrada a violência psicológica, banalizada por uma sociedade sexista e preconceituosa? Quantas mulheres se calam porque suas aflições não se traduzem em um sangue ou mutilações?  Sua dor mais doída ninguém vê, a não ser ela mesma.
É preciso pensar nas articulações onde são produzidas essas violências: múltiplas faces se ocultam e resultam nas feridas provenientes dos desequilíbrios entre mercado, Estado e sociedade; nas feridas da exclusão social, da discriminação racial, da falta de acesso aos bens essenciais, da desigualdade; no modo competitivo e predatório das relações sociais, pautadas na negação do outro. Cultivar a paz, a igualdade e a liberdade pressupõem, também, a explicitação do conflito, retirar das feridas as bandagens que as escondem, colocá-las expostas, inclinar-se sobre elas, conhecê-las, buscar meios de saná-las, não acostumar-se às violências institucionalizadas nas escolas, nas prisões, nas famílias.
Nos serviços de saúde, muitas histórias de violência continuam ignoradas nas filas de atendimento, caladas nos corredores e silenciadas nos consultórios por mãos que apalpam, examinam, tateiam e invadem corpos à procura de sinais físicos que justifiquem as dores, submetendo quem sofre a maior sofrimento. Causas que não são abraçadas, violências que são reproduzidas.
*O novo companheiro levou-a para ver o mar e esse foi “o melhor presente que ganhou nessa vida”. 
Seus olhos cerraram para as marcas do corpo e se abriram para a imensidão de azuis que fundiam céu e mar. Céu azul fixo, seguro, imóvel; mar azul movimento se despejando em espumas brancas aos seus pés, fazendo promessas e beijando-lhe as feridas que se abriam uma a uma, ávidas por serem tocadas.
Observou a suavidade com a qual o mar ocupava-se em apagar as marcas do seu corpo na areia. Ocorreu-lhe que, talvez, ele pudesse eliminar outras marcas; não aquelas que estavam à mostra, mas as mais doídas, as de dentro, das entranhas, do ventre seco judiado feito o chão rachado do sertão; ventre desassossegado revirando-se em conflitos por ter negado abrigo aos dois que morreram, antes que tivessem a chance de vingar. Escolhera não mais gerar filhos sob a dor. Contudo, ela sabia que, as escolhas, mesmo as certas, podem causar dor.

*Trechos disponíveis em http://www.redehumanizasus.net/

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